quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A literatura de memórias


"Ai, que bela poderia ser a vida, que nos presenteava com coisas tão maravilhosas: a neve a cair silenciosamente lá fora, as maçãs assadas, a compota de morangos... se não houvesse as dúvidas angustiosas e a desconfiança contra ela, a própria vida!" (1)

A Literatura de memórias tem nos últimos anos dado uma grande importância ao testemunho dos momentos particulares, da intimidade com que tantas pessoas sujeitas a processos políticos e sociais violentos foram capazes de sobreviver e construir a sua identidade. O mundo em que vivi é de um tempo, em que esse tipo de literatura ainda não tinha uma grande expressão na Europa, mas enquadra-se muito nesse espírito.

Ilse Losa escreve na primeira pessoa, a experiência da sua infância, do início da adolescência na Alemanha dos anos trinta, dando-nos a memória da sua família, de um passado com os seus avós, de um universo que se perdeu em muitas das suas particularidades e afetos. É um livro sobre esse momento inexplicável da história humana, em que a ausência de um espírito corrompeu a essência da vida e a dignidade de milhões de seres humanos.

Nele percebemos como o impossível pôde ser possível, pela crença de um povo numa esperança que se ausentou de si no mais óbvio, onde aos sinais sucessivos foram dadas respostas pouco adequadas. É um livro sobre a vida num século, onde assistimos à construção de um tempo global dominado por uma estética de agressão, de desvinculação das pessoas a uma comunidade, a uma cultura. São esses fragmentos de mundos particulares que chegam até nós.

Em O mundo em que vivi recebemos os espaços, as atmosferas de uma condenação no plano individual a uma cultura que não pôde sobreviver, que se desmoronou, nas perguntas de silêncio de milhões de judeus que interrogaram os dias. Dessas perguntas, as respostas impossíveis chegaram acima de toda a probabilidade, acima de toda a decência humanas. A história de Ilse Losa teve um fim feliz e com ela recordamos esse passado, de onde ela sobreviveu para uma vida de escritora, na cidade do Porto. O mundo em que vivi é em parte, esse caminho para uma escrita que ela preencheria com momentos particulares, os "pequenos nadas" que podem fazer renascer os momentos da vida.

(1) Ilse Losa, O mundo em que vvi, pág. ...

 O mundo em que viviIlse Losa. - 33ª ed. - Porto : Afrontamento, 2014. - 196 p. ; 21 cm. - (Fixões ; 14). - Ler+ Plano Nacional de Leitura. - ISBN 978-972-36-0535-8

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