"Era um rapaz. Tinha nascido nos montes,
entre fraguedos bravios, pinheiros e águas claras.
A sua casa de granito ficava à sombra
de pedregulhos de rosto austero e de carão
zangado, alguns enormes e esmagantes, como
se restos, ainda, do castelo do emir mouro (...)
Ele sabia, nos seus seis anos, espigados,
que o dinheiro não comprava o sonho
e continuava as suas brincadeiras de pensar
e fingir, à beira do riozinho, de caudal
pedregoso e apertado, de corrente cantante
- a espraiar-se no poço dos paus e debaixo
da ponte romana, entre os olmos.
Na margem, havia violetas selvagens
e outras flores, pequeninas e delicadas,
de que não sabia o nome.
Ali, era um dos seus poisos predilectos.
Gostava de ver os alfaiates, de longas pernas,
a cerzir e a passajar as águas claras, quietas
e pouco fundas, onde chapinava e caçava rãs,
e que na sua procura pouco fundura (mistério!)
reflectiam toda a altura dos olmos.
Também gostava de sentir o silêncio,
que media pelo rastejar das lagartixas,
e de espreitar o céu, com nuvens brancas
pousadas no como do monte,
mas que, quando ele o subia e julgava
aproximar-se delas, ficavam altas e inacessíveis,
no azul. (...)
Muito gostava de ter asas e poder voar!
Isso sim, seria ser livre.
Por isso sabia ninhos. (...)
Do pinhal, vinham poupas, piscos, os gaios
com o precioso azul-esverdeado das suas asas,
bandos de pardais, rolas e pombas. Os pássaros
faziam uma roda de asas sobre o campo
verde. Só o cuco ficava lá para os lados da
Abelheira, mas misturava o seu cu-cu, malicioso
e insistente, aos trilos, pios e trri-chis-chis e
arrulhos das rolas e das pombas.
Debaixo do céu azul e rodeado de asas,
o rapaz acordava, com aquele ritual,
a Primavera, que desabrochava em todo
o seu esplendor. Bastava olhar. Nos montes
era já a ressurreição. Flores de sargaço (...)
de olhinho dourado.
E as borboletas, como flores inquietas
e desassossegadas, com o seu branco, canela
ou castanho-fogo, finalmente caligrafado
e japonês, espalhavam bençãos aqui e ali,
e também sobre o beijinho da giesta,
que concentrava o ouro da manhã.
juntavam-se ao amarelo e roxo do pampilho
e soajo."
O rapaz que sabia acordar a Primavera / Luísa Dacosta; il. Cristina Valadas. Alfragide: Asa, 2007
Sem comentários:
Enviar um comentário