segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Memória e cidadania - A memória do Holocausto - Os livros (I)


"Nunca nenhum de nós se tinha encontrado numa situação tão perigosa como a da noite passada. Deus protegeu-nos. Imagina a Policia a remexer na estante da nossa porta giratória, iluminada pela luz acesa, sem dar connosco! Em caso de invasão, com bombardeamentos e tudo, cada um de nós pode responder por si próprio. Neste caso, porém, não se tratava só de nós, mas também dos nossos bondosos protectores.

Estamos salvos. Não nos abandones! É apenas isto que podemos suplicar.Este acontecimento trouxe consigo algumas modificações. O sr. Dussel já não trabalha à noite no escritório do Kraler mas sim no quarto de banho. Às oito e meia e às nove e meia o Peter faz a ronda pela casa. Já não pode abrir a janela durante a noite. Depois das nove e meia não podemos utilizar o autoclismo do W.C. Hoje à noite vem um carpinteiro reforçar as portas do armazém. Há discussões a tal respeito, há quem pense que não se devia mandar fazer isso.

O Kraler censurou a nossa imprudência e também o Henk disse que não devíamos em tais casos descer ao andar de baixo. Fizeram-nos ver bem que somos «mergulhados», judeus enclausurados, presos num sitio, sem direitos, mas carregados de milhares de deveres. Nós, judeus, não devemos deixar-nos arrastar pelos sentimentos, temos de ser corajosos e fortes e aceitar o nosso destino sem queixas, temos de cumprir tudo quanto possível e ter confiança em Deus. Há-de chegar o dia em que esta guerra medonha acabará, há-de chegar o dia em que também nós voltaremos a ser gente como os outros e não apenas judeus.

Quem foi que nos impôs este destino? quem decidiu excluir deste modo os judeus do convívio dos outros povos? quem nos fez sofrer tanto até agora? Foi Deus que nos trouxe o sofrimento e será Deus que nos libertará Se apesar de tudo isto que suportamos, ainda sobreviverem judeus, estes servirão a todos os condenados como exemplo. Quem sabe, talvez venha ainda o dia em que o Mundo se aperceba do bem através da nossa fé, e talvez seja por isso que temos de sofrer tanto. Nunca poderemos ser só holandeses, ingleses ou súbditos de qualquer outro pais. Seremos sempre, além disso, judeus. E queremos sê-lo.

Não percamos a coragem. Temos de ter consciência da nossa missão. Não nos queixemos, que o dia da nossa salvação há-de chegar. Nunca Deus abandonou o nosso povo. Através de todos os séculos os judeus sobreviveram. Através de todos os séculos houve sempre judeus a sofrer, mas através de todos os séculos se mantiveram fortes. Os fracos desaparecem mas os fortes sobrevivem e não morrerão!

Naquela noite pensei que ia morrer. Esperava pela Policia, estava preparada como os soldados no campo de batalha, prestes a sacrificar-me pela pátria. Agora que estou salva, o meu desejo é naturalizar-me holandesa depois da guerra. E Gosto dos holandeses, gosto desta terra e da sua língua. É aqui que gostava de trabalhar. E se for preciso escrever à própria rainha, não hei-de desistir enquanto não conseguir este meu fim.

Sinto-me cada vez mais independente dos meus pais. Embora seja muito nova ainda, sei, no entanto, que tenho mais coragem de viver e um sentido de justiça mais apurado, mais seguro do que a mãe. Sei o que quero, tenho uma finalidade, uma opinião, tenho fé e amor. Deixem-me ser eu mesma e estarei satisfeita. Tenho consciência de ser mulher, uma mulher com força interior e com muita coragem.

Se Deus me deixar viver, hei-de ir mais longe de que a mãe. Não quero ficar insignificante. quero conquistar o meu lugar no Mundo e trabalhar para a Humanidade.
O que sei é que a coragem e a alegria são os factores mais importantes na vida!"

(Excertos do diário de Anne Frank, um dos muitos testemunhos sobre a representação no quotidiano do Holocausto e da ameaça aos judeus).

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