(Rómulo de Carvalho e o seu amigo António Gedeão, foram duas
pessoas que juntaram em si formas de olhar o mundo e os outros de uma forma única e capaz de nos fazer melhor compreender o mistério da vida. Nos dois vimos a divulgação científica, o
artigo, o livro, o poema, o sonho de vencer o preconceito e a ignorância pela
luta diária do pensamento. Que sentimentos e angústias
conheceram Rómulo e Gedeão nas suas vidas de cientista e poeta? Memórias dá algumas respostas. É desse livro que conversa connosco e que servirá de base a algumas atividades que deixamos um excerto sobre essa figura muito rara e de grande inspiração.)
Eu digo "pobre de mim" como diria pobre do pobre que
está sentado à soleira da porta a apanhar sol e a coçar as costas. Mas ele, o
pobre,ainda é feliz porque ao vê-lo desejo ajudá-lo, e eu era um ser indefeso
que ninguém pensava em ajudar. Nunca tive vocação nem jeito para viver,
inclinação elementar que qualquer ser, mesmo sem ser humano, possui por
natureza. Tão incapaz, tão estranho, tão desajustado que ainda hoje, aos
oitenta e um anos, me sinto tão surpreendido de viver como aquele frágil menino
de um ano a quem a irmã mais velha ampara, no retrato, para que não caia do
alto da coluna de madeira em que o poisaram.
Ele tem a cabecinha um pouco inclinada sobre o lado direito como
quem pede auxílio, e eu sempre assim a mantive, mas por dentro, dissimulada
numa cara comprida e talvez severa, implorando o mesmo auxílio. Sou um pobre
ser necessitado de carinho, à espera de um afago que lhe cerre os olhos
interiores com deleite como os gatos quando se deitam de barriga para cima.
Preciso de amor constante, o amor que se exprime em cada gesto e em cada olhar
do quotidiano, mesmo sem contactos, sem palavras, sem premeditações,
espontâneo, natural. Amor é um termo ambíguo que se presta a ridicularizar quem
o pronuncia. Mas este de que falo não é o que nos faz supor de olhos brancos,
em alvo. O amor de que falo é o que se opõe ao ódio, à violência, à
dissimulação, ao orgulho, à prepotência, a todas essas "virtudes" que
adornam os humanos com os loiros dos triunfos.
Por não possuir tais "virtudes" fui sempre encarado com
uma ponta de desconfiança pelos meus companheiros de existência porque
naturalmente sentiam a minha impenetrabilidade às suas manobras, manobras
correntes, quase inocentes, atitudes do dia-a-dia, de momento a momento, só
detectáveis por um escrúpulo demasiado como sempre foi o meu. Em jovem já
guardava da humanidade o mesmo sentimento que conservo, a mesma
incompatibilidade com as normas correntes de conduta social e privada, e
a passagem dos anos apenas veio dar mais solidez e convicção às suspeitas do
instinto. Aliás, se me alheasse dessas normas por um instante bastaria
pegar em qualquer jornal do dia para tudo se avivar. Felizmente a vida
proporcionou-me encontros com algumas excpções ao tipo comum do ser humano, e
acolhi-as com comoção.
Apesar destes rigores falo bem a toda a gente, uso boas palavras,
não me exalto, e posso-me gabar que nunca, na vida inteira, me zanguei com
alguém, nunca cortei relações com alguém, nunca virei a cara a alguém. É que,
meus queridos tetranetos, eu não detesto os outros nem fujo ao seu convívio se
os vejo aproximarem-se de mim. Os meus sentimentos para com os outros não são
de repulsa, mas (imaginem!) de pena, de piedade. tenho pena de ver as pessoas
presas aos seus preconceitos, às suas ansiedades, aos imperativos da sua
hereditariedade, ao peso das tradições, aos condicionamentos do ambiente físico
e humano em que nasceram ou vivem. Tenho pena de todos, e também tenho
pena de a ter, porque as pessoas preferem ser odiadas a suscitarem pena. No
fundo somos todos irresponsáveis, tanto eles pelo que fazem como eu por reparar
nisso.
Rómulo de Carvalho. (2010). Memórias. Lisboa:
fundação Calouste Gulbenkian
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