Se há na terra um reino que nos
seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e
simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país
inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em
momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa
espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os
anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o
Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da
sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da
utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da
alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis
criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as
mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão
sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta,
não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
Eugénio de
Andrade, “Em louvor das crianças”, in
Rosto precário / Eugénio de Andrade ; pref. Joana Matos Frias. - 1ª ed. - Porto : Assírio &
Alvim, 2015. - 223, [1] p. ; 21 cm. - (Obras de Eugénio de Andrade ; 11). -
ISBN 978-972-37-1815-7
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