"Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho
louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio. O Búzio era como um monumento
manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada
era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram
iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era
baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o
próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi
roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas. (...)
Mas o Búzio aparecia sozinho, não se sabia em que dia da semana,
era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida e
não fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio,
ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza. O
Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda
que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua
companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés
descalços pareciam escutar o chão que pisavam. E foi assim que o vi aparecer
naquela tarde em que eu brincava sozinha no jardim. (...)
No alto da duna o Búzio estava com a tarde. O sol pousava nas suas
mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus ombros. Ficou algum tempo calado,
depois devagar começou a falar. Eu entendi que ele falava com o mar, pois o
olhava de frente e estendia para ele as suas mãos abertas, com as palmas em
concha viradas para cima. Era um longo discurso claro, irracional e nebuloso
que parecia, com a luz, recortar e desenhar todas as coisas. Não posso repetir
as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não
entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi,
porque o vento rápido lhas arrancava da boca.
Mas lembro-me que eram palavras moduladas como um canto, palavras
quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e
o seu peso. Palavras que chamam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras
brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como
praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele
os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol,
silêncio e brilho das estrelas."
Sophia, "Homero" in, Contos exemplares / Sophia de Mello Breyner Andresen ; il. João Catarino. - 2ª ed. - Porto : Porto Editora, 2014. - 161, [2] p. : il. ; 21 cm. - ISBN 978-972-0-72627-8
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