Eram as flores no
friso da janela que davam a nota mais colorida à sala de estar, virada para a
rua. A tia Gertrud da América mandara, certo dia, um cartuchinho de sementes
que a avó espalhara num vaso com terra. Em breve nascera uma roseira. Não uma
roseira vulgar, mas sim rara, que dava apenas uma rosa em cada Verão, rosa dum
vermelho carregado e, no dizer da avó, mais bela e mais duradoura do que todas
as rosas da aldeia. Assim como o Sol é o astro mais altivo e mais luminoso no friso
da janela.
Ao contemplá-la, absorta, pensava na terra da América e na cidade de
Nova Iorque, que estava para a nossa aldeia como o elefante para a mosca. E
assaltava-me então a curiosidade de terras distantes, estranhas, de tal forma
que me esquecia do avô Markus, a quem prometera nunca deixar. Sonhava com ruas
largas, sem fim, onde floresciam sebes de rosas diante de casas brancas cujas
janelas transbordavam de rosas, molhos e molhos de rosas, e uma inquietação
tomava posse de mim. A Ânsia de permanecer junto do friso da janela e ao mesmo
tempo de poder estar lá, onde as rosas eram assim, e até em toda a parte do
mundo.
Ao lado da janela,
precisamente onde floria a roseira americana, a avó Ester dormia todas as
tardes a sua sesta de quinze minutos. A cabeça encostada à almofada, os pés no
escabelo, certinhos um ao lado do outro, a meia com as cinco agulhas no regaço,
dormia sem se mexer. O rosto miúdo, sulcado de rugas, donde o nariz parecia
quere saltar, refletia o seu cansaço. Quando a via assim a dormir, lembrava-me
dum pássaro morto que certa vez encontrei, com o avô, na borda de um poço
coberto de neve.
Entretanto eu tinha
licença de folhear as velhas revistas, de dobrar tiras de papel para acender o
candeeiro a gás ou o cachimbo do avô, pois a avó não consentia que se gastassem
fósforos estando o fogão aceso para fornecer lume. De tempos em tempos
interrompia essas ocupações para contemplar a avó a dormir. Em vão procurava no
rosto esgotado os vestígios da beleza e da graciosidade que tivera, no dizer do
avô, quando fora nova e ele a escolhera para mulher.
Uma das duas portas
da sala de estar dava para o quarto de dormir, onde pairava sempre um cheiro a
lilases saído da gaveta inferior da cómoda. Ali a avó guardava as suas
quinquilharias pessoais. Não deixava de ser estranho ela, a mulher prática, não
conseguir desfazer-se de todas essas rendas e rendinhas, golas e golinhas
antiquadas, dos leques, das flores de papel e de outras coisas no género, eme
vez disso conservá-las em caixas de sabonetes e latas de rebuçados.
A avó
dormia numa das suas camas, enquanto eu ficava com o avô na outra. Era ela que
me lavava, no fim do dia, dos pés à cabeça, numa bacia de zinco, mas era o avô
quem me levava às cavalitas para a cama que, nos primeiros dias depois de a avó
lhe ter mudado os lençóis, cheirava a alfazema. Todas as noites o avô se
sentava ao meu lado. Contava histórias e cantava canções. A voz volumosa,
grave, animava a escuridão com as figuras dos contos de fadas e da Bíblia e
embalava-me até eu adormecer.
Certa noite, depois
de ele me ter deixado, aproximou-se da janela aberta um ruidoso bater de asas.
Suspendi a respiração e julguei morrer de medo. Duas asas batiam sobre a minha
cabeça e os meus ombros. Quis gritar, mas a garganta aperte-se-me. Fechei os
olhos, abri-os, cravei-os na escuridão… Já não havia mais nada. Pela janela
aberta, entrava, leve e fresco, o ar da noite. Sentei-me, apalpei tudo em
redor, ergui os braços. Nada. Só a escuridão e o silêncio. Quem estivera
comigo? O anjo de Jacob? O pássaro gigante? O rei dos amieiros? Mas os reis
tinham asas?... Quando finalmente o avô tornou a entrar para se deitar ao meu
lado, aconcheguei-me, aliviada, nos seus braços.
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