quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Livros do Mês (10.19) - II


Eram as flores no friso da janela que davam a nota mais colorida à sala de estar, virada para a rua. A tia Gertrud da América mandara, certo dia, um cartuchinho de sementes que a avó espalhara num vaso com terra. Em breve nascera uma roseira. Não uma roseira vulgar, mas sim rara, que dava apenas uma rosa em cada Verão, rosa dum vermelho carregado e, no dizer da avó, mais bela e mais duradoura do que todas as rosas da aldeia. Assim como o Sol é o astro mais altivo e mais luminoso no friso da janela. 

Ao contemplá-la, absorta, pensava na terra da América e na cidade de Nova Iorque, que estava para a nossa aldeia como o elefante para a mosca. E assaltava-me então a curiosidade de terras distantes, estranhas, de tal forma que me esquecia do avô Markus, a quem prometera nunca deixar. Sonhava com ruas largas, sem fim, onde floresciam sebes de rosas diante de casas brancas cujas janelas transbordavam de rosas, molhos e molhos de rosas, e uma inquietação tomava posse de mim. A Ânsia de permanecer junto do friso da janela e ao mesmo tempo de poder estar lá, onde as rosas eram assim, e até em toda a parte do mundo.

Ao lado da janela, precisamente onde floria a roseira americana, a avó Ester dormia todas as tardes a sua sesta de quinze minutos. A cabeça encostada à almofada, os pés no escabelo, certinhos um ao lado do outro, a meia com as cinco agulhas no regaço, dormia sem se mexer. O rosto miúdo, sulcado de rugas, donde o nariz parecia quere saltar, refletia o seu cansaço. Quando a via assim a dormir, lembrava-me dum pássaro morto que certa vez encontrei, com o avô, na borda de um poço coberto de neve.

Entretanto eu tinha licença de folhear as velhas revistas, de dobrar tiras de papel para acender o candeeiro a gás ou o cachimbo do avô, pois a avó não consentia que se gastassem fósforos estando o fogão aceso para fornecer lume. De tempos em tempos interrompia essas ocupações para contemplar a avó a dormir. Em vão procurava no rosto esgotado os vestígios da beleza e da graciosidade que tivera, no dizer do avô, quando fora nova e ele a escolhera para mulher.

Uma das duas portas da sala de estar dava para o quarto de dormir, onde pairava sempre um cheiro a lilases saído da gaveta inferior da cómoda. Ali a avó guardava as suas quinquilharias pessoais. Não deixava de ser estranho ela, a mulher prática, não conseguir desfazer-se de todas essas rendas e rendinhas, golas e golinhas antiquadas, dos leques, das flores de papel e de outras coisas no género, eme vez disso conservá-las em caixas de sabonetes e latas de rebuçados. 
A avó dormia numa das suas camas, enquanto eu ficava com o avô na outra. Era ela que me lavava, no fim do dia, dos pés à cabeça, numa bacia de zinco, mas era o avô quem me levava às cavalitas para a cama que, nos primeiros dias depois de a avó lhe ter mudado os lençóis, cheirava a alfazema. Todas as noites o avô se sentava ao meu lado. Contava histórias e cantava canções. A voz volumosa, grave, animava a escuridão com as figuras dos contos de fadas e da Bíblia e embalava-me até eu adormecer.

Certa noite, depois de ele me ter deixado, aproximou-se da janela aberta um ruidoso bater de asas. Suspendi a respiração e julguei morrer de medo. Duas asas batiam sobre a minha cabeça e os meus ombros. Quis gritar, mas a garganta aperte-se-me. Fechei os olhos, abri-os, cravei-os na escuridão… Já não havia mais nada. Pela janela aberta, entrava, leve e fresco, o ar da noite. Sentei-me, apalpei tudo em redor, ergui os braços. Nada. Só a escuridão e o silêncio. Quem estivera comigo? O anjo de Jacob? O pássaro gigante? O rei dos amieiros? Mas os reis tinham asas?... Quando finalmente o avô tornou a entrar para se deitar ao meu lado, aconcheguei-me, aliviada, nos seus braços.

 O mundo em que vivi / Ilse Losa. - 1ª ed. - Porto : Manaus, 1949. 

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